O Canto do Feminino
Luciana Vilhena

Luciana Vilhena é Doutora em Língua Portuguesa pela UFRJ, tendo atuado na rede privada, na rede do estado do Rio de Janeiro, incluindo a EJA, por 22 anos. Há 15 anos é Professora do Departamento de Letras/Escola de Letras da UNIRIO, onde orienta seus interesses entre as atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão. Na pesquisa, desenvolve uma investigação que transita pelo discurso de cartas numa perspectiva da Análise Semiolinguística do Discurso, enfocando aspectos históricos e discursivos no âmbito literário e fora dele, além de se debruçar sobre os estudos sobre a leitura, a mediação de leitura e a formação de leitores. Além disso, ajusta o olhar para os discursos sobre o feminino, tanto no que se refere às representações da mulher, quanto à autoria feminina, mas, fundamentalmente, no pensamento sobre a relação do feminino enquanto arquétipo, que se manifesta nas relações com o corpo, com a natureza e seus elementais. Na extensão, seu interesse é o diálogo entre a universidade e a comunidade para além de seus muros, uma vez que essa perspectiva dialética permite que a universidade cumpra um de seus pilares, que é o desenvolvimento de soluções para problemas reais de modo a promover a inclusão e a formação de sujeitos críticos.
Feiticeiras, ninfas e deusas
Pensei em usar esse espaço de experimentação para trazer algumas percepções sobre o que tenho entendido sobre o feminino e suas manifestações. O que surge para mim, na inauguração desse espaço, é a figura feminina metamorfoseada na imagem da feiticeira. Não é de hoje que costumamos associar, na mitologia, as deusas, ninfas e feiticeiras como figuras míticas com poderes transumanos, rodeadas de mistério. O que sempre me seduziu, entretanto, foi a percepção dessas figuras feminis como arquétipos de padrões universais de comportamento feminino, presentes no inconsciente coletivo. Como boa escorpiana, sou atraída por questões de magia e alquimia e o que me seduz, de fato, é mergulhar naquilo que não se consegue ver, mas sentir. E é aí que talvez esteja meu incômodo em pensar a vida como uma experiência em que a imanência do corpo encerre uma única forma de enxergar a realidade. Vejo, então, a presença da mulher como a possibilidade de ritualizar uma maneira de existir em que o sentir esteja em evidência. Knox (2011, p. 73)[1], em seu Prefácio à Odisseia, nos diz que “na Odisseia, as raras exceções são as cenas das quais as mulheres são excluídas”, o que nos leva a pensar em uma presença importante do feminino nesse período antes da era comum. A mulher que pare, que nutre, que cuida, que doa, que serve, que sente é aquela que se envolve nas feitiçarias do cotidiano, do contato com a natureza aos sabores da cozinha, das dores do parto ao seio ao filho. É nesse sentido que se destaca a figura da ninfa, por exemplo, metaforizada nos espíritos da natureza, ligados a fontes, rios, árvores e montes: a beleza que relaciona mundo humano a mundo natural, aos elementais e ao fruir do ritmo da vida. Não há como não trazer à tona a imagem de Calipso, representada como figura feminina sedutora: “a amante insaciável e deusa perfeita que aprisiona os viajantes que resolvem desembarcar em sua ilha por uma ironia do destino” (Fernandes, 2018, p. 3)[2], como arquétipo de força da sexualidade e da autonomia do desejo feminino. Imagine-se uma deusa que tem a ousadia de aprisionar Odisseu por sete anos, embora, em troca, lhe oferecesse a imortalidade! Que prisão sem muros é essa da qual Odisseu não consegue escapar? Em um movimento um pouco distinto, vejo Circe como aquela que, em alguma medida, se apresenta como uma figura distante dos humanos e dos deuses olimpianos, porque nela está contida toda a sua origem titânica, condensando, simultaneamente, sua inconstância e seu temperamento incontrolável. Uma feiticeira irascível, que necessita, portanto, de barganha para atrair seus parceiros e que, invariavelmente, só consegue tê-los a partir de poções e feitiços. Circe, a feiticeira solitária, deixada, constantemente, sozinha por seus homens na Ilha de Eeia remete a outro arquétipo, que é o do abandono e que podemos interpretar como um padrão muito recorrente na história das mulheres ao longo do tempo. Trazer a imagem de Circe é, então, para mim, pensar na “Circe de belas tranças, terrível deusa de fala humana” (Homero, X, 136)[3], que transita solitária por Eeia enfrentando seus mais terríveis demônios interiores, como, no fim das contas, fazemos todas nós. Retomando ao domínio do sentir feminino, talvez uma das grandes incompreensões de nosso modo de ser esteja ligado justamente à alquimia da mulher como aquela que teria sempre o melhor remédio contra todos os males físicos e morais, conseguindo transformar metais em ouro, sombra em luz, dor em prazer, doença em cura com suas ferramentas, que seriam, no olhar do ocidente, práticas de magia, feitiçaria e bruxaria. É bom que se diga, entretanto, que todo esse olhar é oriundo das misturas culturais entre ritos pagãos, de origem romana e germânica e de concepções do cristianismo popular sobre os demônios e entidades inferiores que teriam o poder de transformar uma coisa em outra. Assim, o poder feminino passa a ser solapado e reprimido, originando, como sabemos, concepções distorcidas sobre a mulher, sobre o feminino e todas as suas formas de expressão. Seguimos, todavia, resistindo amorosamente, como o fogo que transmuta, a água que sente, a terra que acolhe, o ar que liberta. Feiticeiras que somos! [1] KNOX, Bernard. Prefácio. In: HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e notas de Bernard Knox. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 1ª ed., 2011 [2] FERNANDES, Mayã Gonçalves. Nymphê Calipso e seu duplo propósito na Odisseia de Homero. Revista Das Questões, [S. l.], v. 5, nº 5, 2018. Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/dasquestoes/article/view/18540. Acesso em 13 ago.2025 [3] HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e notas de Bernard Knox. São Paulo: Penguin Classics - Companhia das Letras, 1ª ed., 2011
O que é o feminino?

